PARECER | Das Publicações Discriminatórias e da Incitação à Violência por Motivos Religiosos.
O Instituto Brasileiro de Direito de Direito e Religião (IBDR), neste ato represente por seu Presidente, Dr. Thiago Rafael Vieira e pelo Presidente do Conselho Deliberativo, Rev. Dr. Davi Charles Gomes, emite o presente PARECER acerca dos preocupantes casos de preconceito religioso que vêm repetidamente ocorrendo em publicações nas mídias de comunicação, jornalismo e redes sociais.
O presente PARECER tem o objetivo de contribuir para um debate mais lúcido acerca da proteção do direito à consciência e à liberdade de crença e do correto exercício da liberdade de expressão e manifestação de pensamento.
Casuística:
O acirramento político no Brasil durante os últimos anos vem tomando proporções maiores e tem alcançado áreas que pouco tempo atrás menos pareciam importar para a sociedade. A crescente participação de religiosos na esfera pública é um desses fenômenos que chamam a atenção e provocam debates muitas vezes acalorados. Percebe-se, no entanto, que está se tornando comum que seja extrapolado o campo das ideias, partindo-se para o ataque ad hominen, e mais preocupante ainda, fazendo-se notórias as investidas contra grupos e cidadãos identificados por sua religião.
Tomamos como exemplo o texto publicado no site da Metropoles, portal de notícias do Distrito Federal, assinado por Anderson França intitulado “Todo Castigo Para Crente é Pouco”[i], no qual há clara incitação à discriminação religiosa e incitação ao ódio e à violência. Por conta do recente caso em que a Deputada Federal Flordelis dos Santos de Souza é a principal suspeita de envolvimento no assassinato de seu próprio marido, o autor sugere que as mãos de todos os evangélicos estão sujas de sangue, chegando a vilipendiar a dignidade destes com palavras vis de baixo calão, nestes exatos termos: “O Jesus evangélico cheirou muita cocaína e saiu de casa com inveja do irmão Satanás, e saiu pela cidade fazendo todo tipo de merda”. Não satisfeito, ainda referindo-se aos evangélicos, afirma que é preciso “pegar as espadas que Pedro lançou contra os soldados romanos, e cravá-las nos filhos do inferno que estão no nosso meio”.
Afirmações como essas apresentam uma agressividade incompatível com o respeito à pluralidade política, fundamento da República (art. 1º, V da CRFB/88) e são antagônicas aos seus objetivos fundamentais, tal qual o de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3 º, IV, da CRFB/88). Ponto a partir do qual passa-se a discorrer.
Da Proteção Constitucional, dos Tratados Internacionais e dos Conflitos de Liberdades
A Constituição da República Federativa do Brasil elenca em seu art. 5º, incisos VI e VIII, o direito à liberdade consciência e de crença no rol dos direitos fundamentais, garantindo a proteção aos locais de cultos e suas liturgias, bem como assegurando que ninguém será privado de direitos por motivo de crença. O Brasil é, ainda, signatário da Pacto Internacional de Direito Civis e Políticos, da Convenção Americana dos Direitos Humanos, entre outros tratados que protegem o direito em questão e prezam pela tolerância religiosa.
Como bem enfatizam Thiago Rafael Vieira e Jean Regina, em sua obra Direito Religioso – Questões Teóricas e Práticas: “Todas as liberdades emanam da Dignidade da Pessoa Humana, inclusive a de expressão. Em outras palavras, todas as liberdades são servas da dignidade e trabalham para seu crescimento”. Portanto, não se trata de diminuir o grau de importância da liberdade de expressão e de manifestação de pensamento, tão caras à nossa sociedade e também elencada como direito fundamental na Constituição da República, em seu art. 5o, inc. IV e IX. Trata-se, porém, de estimular o seu correto uso e exercício para a persecução do bem comum, ou seja, para servir à sociedade e ao ser humano. Continuam os autores supracitados:
Em razão da liberdade de expressão posso falar qualquer coisa? Entendemos que não e, aqui, damos nossa singela contribuição ao debate. A liberdade de expressão encontra um limite: a dignidade da pessoa humana. [...] Ofender ou criticar uma instituição, entre elas, a igreja, encontra guarida na liberdade de expressão, senão vejamos: a igreja, como instituição, pode ser mais ou menos “admirada”, por este ou aquele fiel, mas, regra geral (até por não ser o propósito da igreja instituição), a igreja não é adorada por ninguém. Por quê? Porque a instituição é composta de homens, logo passível de erros. [...] De outra banda, a igreja administra o sagrado, mas não é o sagrado em si. [...] Entretanto, o(s) objeto(s) e divindade(s) de adoração presentes em qualquer credo e fé, por mais que estejam associados a esta ou aquela igreja/instituição, são inerrantes para aqueles que o adoram. [...] Ofender e denegrir o sagrado é um ataque ao mais íntimo do homem. [...] Assim, sempre que alguém solapar o sagrado, é necessário a sociedade civil interpor-se, contrariar, não aceitar [...]. Não há liberdade que, ao colidir com a dignidade humana, resista, porque é a dignidade da pessoa humana que possui o condão de tornar um axioma em liberdade. Não se trata de pesar qual liberdade é mais importante ou maior, se a de expressão ou a religiosa. As duas liberdades, como todas as demais, existem para SERVIR. Servir ao preceito fundamental da Dignidade da Pessoa Humana. Aquela que não a serve, ou pior, que a ofende, não está cumprindo seu propósito, em claro desvirtuamento.
Na relação com o indivíduo, é certo dizer que “liberdade é o campo de atuação do indivíduo imune à intervenção do Estado”[ii]. “As liberdades, porém, não consistem apenas em poder agir dentro do que não é vedado ou, tampouco, exigido, mas também, ainda mais tratando-se de direito fundamental, é o poder de exigir do Estado a sua proteção, quando houver a necessidade de tutela nas relações entre cidadãos”[iii].
Interessa também invocar a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a qual, no que tange às liberdades, traz uma perspectiva voltada à relação entre indivíduos. Ela ratifica, em seu art. 4°, que “a liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique a outrem”. Podemos assim dizer, portanto, que o cidadão não goza de liberdade alguma que seja absoluta – sem restrições, pois isso “prejudicaria a liberdade dos demais indivíduos”[iv]. Assim, cada direito é limitado pela existência de outros direitos e, extrapolando os limites, sujeita-se à responsabilização.
Desse modo, o direito de expressão e livre pensamento não pode desrespeitar a dignidade do ser humano, sob pena de se afastar totalmente dos objetivos fundamentais de nossa República. As manifestações públicas, escritas ou verbais, carregadas de expressões agressivas e discriminatórias contra a religião encontram-se diametralmente opostas à dignidade da pessoa humana, ao espírito de nossa Constituição e às aspirações de paz e tolerância que a sociedade brasileira almeja em concordância com as nações amigas de todo o globo.
Dos Crimes Contra a Religião e de Preconceito Religioso
A Lei nº 7.716/89, conhecida como Lei do Racismo, trata, na verdade, de vários crimes de preconceito, não só por raça, cor, ou etnia, mas também por religião, conforme previsto em seu art. 1º: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
O artigo 20 da referida lei tipifica a incitação à discriminação ou preconceito de religião, qualificando o crime se este é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa.
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza:
Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
O art. 208 do Código Penal, por sua vez, trata dos crimes contra o sentimento religioso:
Art. 208 - Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:
Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.
Parágrafo único - Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.
É importante salientar que dos crimes contra a honra, previstos nos arts. 139, 140 do Código Penal há uma qualificação específica no art. 140 , § 3o, quando “a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”, enquanto o artigo 141, III, majora em um terço, quando “na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria”.
Vê-se, portanto, que no arcabouço jurídico brasileiro há uma proteção especial para a esfera religiosa e o sentimento que advém do apreço dos fiéis por suas instituições e divindades. É algo tão profundamente importante que o desprezar, confrontar, agredir, vilipendiar, caçoar, discriminar, ou incitar à violência por motivos religiosos torna-se matéria de direito penal. Não poderia ser diferente, posto que a Liberdade de crença e de culto é um direito humano fundamental reconhecido na Constituição de nossa República e nos tantos tratados internacionais das quais o Brasil é signatário. Deve, assim, ser penalizado todo e qualquer ato que seja contrário ao livre exercício da religião, bem como à fé e à boa consciência que a sustentam.
Dos Danos Morais
Além da contrariedade aos princípios constitucionais e do âmbito criminal relacionado à discriminação religiosa, há ainda de ser tratada a esfera civil. Os crimes contra a liberdade religiosa ensejam o direito à indenização por danos morais quando há lesão provocada por tais atos. Sergio Cavalieri Filho ensina ser o dano:
… lesão a um bem ou interesse juridicamente tutelado, qualquer que seja a sua natureza, que se trate de um bem patrimonial, que se trate de um bem integrante da personalidade da vítima, como a sua honra, a imagem, a Liberdade, etc.[v]
Portanto, em situações nas quais resta evidente que honra, ou imagem, ou dignidade, ou liberdade foram lesadas através de publicações em mídia de comunicação ou nas redes sociais, pastores, padres e religiosos ofendidos podem ingressar com ação civil indenizatória contra os autores de textos que incitam o ódio e a violência.
Conclusão
Nesse sentido, somos de parecer que publicações discriminatórias contra religiosos, que incitam a violência contra estes, ou desrespeitam o sentimento religioso:
a. violam diversos dispositivos constitucionais brasileiros, entre eles: art. 1º, II, III e V; art. 3º, I e IV; art. 5º, IV, VI, VIII, X e art. 19, I.
b. violam diversos tratados internacionais que o Brasil é signatário, entre eles: Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; Pacto de São José da Costa Rica; Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções e Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
c. podem incidir nos artigos 208 do Código Penal; art. 1º, art. 20, § 2º da Lei nº 7716/1989; arts. 139 e 140, com as cominações do 141, quando for o caso, todos artigos do Código Penal e art. 186 do Código Civil;
d. são passíveis de indenização por danos morais quando lesam religiosos em sua honra, imagem, dignidade ou liberdade.
Este é o parecer. SMJ.
Porto Alegre, 02 de setembro de 2020.
Prof. Dr. Thiago Rafael Vieira | Presidente
Prof. Dr. Davi Charles Gomes | Presidente do Conselho Deliberativo
[i] Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas-blogs/anderson-franca/todo-castigo-pra-crente-e-pouco. Acesso em 30 de agosto de 2020.
[ii] ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos. 1a ed. Porto Alegre, RS : Sergio Antonio Fabris Editor, 1996, p. 25.
[iii] OLIVEIRA, Warton Hertz de. Liberdade Religiosa no Estado Laico: Abordagem Jurídica e Teológica. Dissertação apresentada como Trabalho Final de Mestrado Profissional para obtenção do grau de Mestre em Teologia Escola Superior de Teologia, Programa de Pós-Graduação Linha de Pesquisa: Ética e Gestão. São Leopoldo, 2015, p. 26. Disponível em: http://dspace.est.edu.br:8080/jspui/bitstream/BR-SlFE/560/1/oliveira_wh_tmp396.pdf
[iv] ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos. 1a ed. Porto Alegre, RS : Sergio Antonio Fabris Editor, 1996, p. 35.
[v] Cavalieri Filho, Sergio. Programa de Responsabilidade Civi. 12 ed. rev. e amp. São Paulo, Ed. Atlas, 2015, p. 104.