Liberdade não é uma via de mão única (Davi Lago no G1)
Autor: Davi Lago
O Brasil vivencia episódios recorrentes de intolerância religiosa como a vandalização e destruição de locais de culto das religiões de matriz africana. É importante reafirmar algumas lições da experiência histórica destes últimos séculos que foram devidamente absorvidas pelo sistema jurídico contemporâneo. Vale ressaltar de partida que a noção de “tolerância” ganhou importância no início do período moderno como um desafio para os Estados ocidentais: construir um arcabouço jurídico e institucional para viabilizar a coexistência de múltiplas religiões em seu interior. O estopim foi a Reforma protestante e a insatisfação de diversos líderes seculares com abusos políticos cometidos pelo clero católico daquele período. Desde então o conceito de tolerância passou a significar de modo geral a convivência de crenças antagônicas no mesmo corpo social. No plano pessoal, tolerância é a capacidade mental de compreender que o outro tem opiniões, critérios, crenças diferentes. Isto posto, podemos destacar duas lições basilares sobre tolerância religiosa:
Primeiro, a “lição jurídica”: à luz do Direito, os relatos recentes de ataques aos locais de culto de religiões de matrizes africanas são criminosos; seus autores precisam ser identificados e punidos na forma de lei. Estes atentados à liberdade religiosa não são casos de “politicamente correto”, “etiqueta social” ou “ética pessoal”, são casos de violação constitucional. A Constituição de 1988 protege a liberdade religiosa (Art.5º VI) e preconiza a laicidade estatal (Art.19, I). Destruir o local de culto religioso é violação grave da liberdade religiosa. Vale ressaltar o Artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos que afirma: “Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular”. No paradigma do Estado Democrático de Direito tudo deve ser tolerado exceto aquilo for crime. O cidadão tem o direito de fazer o que quiser, menos cometer crimes. O limite das liberdades (inclusive religiosa) é a lei estabelecida pela comunidade política. Ninguém pode alegar “liberdade religiosa” nem “liberdade de expressão” para cometer crimes previstos em lei. “Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa fixada em lei” (Art.5º, VIII, CF/88).
O segundo aprendizado histórico sobre a questão da tolerância religiosa é o que podemos chamar de “lição filosófica”. Do ponto de vista teórico a questão da tolerância foi debatida especialmente a partir da “Carta acerca da tolerância” de John Locke passando pelas reflexões de Voltaire, Kant, Marcuse, Popper, Bobbio, Walzer, por exemplo. Todos aqueles que refletiram sobre a questão afirmaram ideias parecidas. Toda religião deve ser aceita, exceto aquela que pregar a violência e destruição da própria sociedade. Essa ideia central pode ser sintetizada no chamado “paradoxo da tolerância”, ou seja, a noção de que a tolerância ilimitada é coveira da própria tolerância. Em outras palavras, para a manutenção de uma comunidade tolerante é necessário o direito de não tolerar o intolerante. Por isso é um paradoxo: na comunidade multicultural tolerante tudo deve ser tolerado menos os intolerantes.
Portanto, quando conferimos o desenvolvimento dos ideais de tolerância nos últimos séculos, percebemos que o desafio da tolerância na contemporaneidade não é um desafio teórico ou jurídico, mas um desafio cultural e social. As lições jurídicas e filosóficas lotam livros e mais livros, teses e mais teses, mas ainda assim verificamos o aumento da intolerância neste início de século 21. Em nossas sociedades plurais e complexas existe a tendência de se afirmarem cada vez mais direitos à diferença. O problema é que caminhamos para um estado de beligerância extrema, com indivíduos cada vez mais atomizados, gerando uma sociedade fraca, fragmentada e ineficiente. A teoria da tolerância revela que o direito à diferença deve ser equilibrado com a identificação dos pontos de semelhança e convergência da comunidade política. O preceito da tolerância, além de constitucional e filosófico, é um preceito pragmático: a alternativa é a exclusão ou destruição do outro, a barbárie. Assim, o culto extremo à diferença inviabiliza a convivência em sociedade e alimenta a intolerância. Como disse Voltaire a intolerância é um absurdo, é o “direito dos tigres, e é bem horrível; porque os tigres matam para comer e nós nos exterminamos por causa de parágrafos”. Definitivamente, a liberdade não é uma via de mão única.
Fonte primária: https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/2019/09/14/liberdade-nao-e-uma-via-de-mao-unica.ghtml